A Didaquê
A Doutrina dos Apóstolos: O Manual de Instruções Perdido da Igreja Primitiva
Imagine por um instante que você é um cristão vivendo no final do primeiro século ou no início do segundo. Os apóstolos, as testemunhas oculares de Jesus, já partiram ou estão nos seus últimos dias. O Novo Testamento, como o conhecemos hoje, ainda não foi compilado num único livro. Existem cartas de Paulo circulando, talvez um ou dois evangelhos tenham chegado à sua comunidade, mas não há um guia unificado, um manual prático que diga de forma clara e direta: “É assim que vivemos. É assim que batizamos. É assim que oramos. É assim que celebramos a ceia. É assim que distinguimos um mestre verdadeiro de um falso.” Como uma comunidade cristã se organizaria em meio a tantas dúvidas e perigos? A resposta para essa pergunta pode estar em um documento extraordinário, um texto que por séculos foi considerado perdido, mas que nos oferece uma janela única para o dia a dia da fé nos tempos pós-apostólicos. Esse documento é conhecido como a Didaquê.
O nome completo do texto é “A Doutrina do Senhor Através dos Doze Apóstolos para as Nações”, mas é mais conhecido por seu nome curto, Didaquê, que em grego significa simplesmente “Ensino” ou “Doutrina”. Redescoberto no final do século dezenove em uma biblioteca de Constantinopla, esse pequeno manual causou um enorme impacto nos estudos sobre a História da Igreja. Alguns dos primeiros Pais da Igreja, como Clemente de Alexandria e Orígenes, o citaram com respeito, e houve até mesmo um debate se ele deveria ou não fazer parte do cânon do Novo Testamento. No final, a Igreja decidiu por não o incluir, mas sua importância histórica é inegável. A Didaquê funciona como uma ponte entre os escritos dos apóstolos e a geração seguinte de líderes cristãos, revelando as preocupações práticas e a estrutura de fé das primeiras comunidades.
O texto é, em essência, o primeiro catecismo cristão que conhecemos, um manual de instruções dividido em quatro partes principais. A primeira estabelece a base moral da vida cristã, conhecida como “Os Dois Caminhos”. A segunda oferece instruções detalhadas sobre rituais fundamentais: o batismo, o jejum e a Eucaristia. A terceira parte é um guia prático sobre ministério, explicando como as comunidades deveriam receber e testar apóstolos, profetas e mestres itinerantes. Por fim, a quarta seção é uma exortação escatológica, um lembrete sobre a segunda vinda de Cristo e a necessidade de vigilância constante. Analisar cada uma dessas partes é como abrir uma cápsula do tempo e observar como a fé cristã era vivida em sua forma mais antiga e comunitária.
O Caminho da Vida e o Caminho da Morte
A Didaquê começa com uma declaração de simplicidade moral poderosa: “Existem dois caminhos: um da vida e um da morte, e há uma grande diferença entre os dois.” Essa abordagem de “dois caminhos” não era exclusiva dos cristãos; era uma forma de ensino moral comum na literatura judaica da época, como nos Manuscritos do Mar Morto. No entanto, a Didaquê a cristianiza completamente.
O Caminho da Vida é definido, em primeiro lugar, pelo mandamento de amar a Deus e ao próximo, ecoando diretamente as palavras de Jesus. Em seguida, o texto apresenta uma versão do que conhecemos como a Regra de Ouro:
“Tudo o que você não gostaria que acontecesse com você, não faça a outrem.”
A partir daí, desdobra-se uma lista de preceitos que ecoam o Sermão da Montanha e outros ensinamentos dos Evangelhos. Há instruções para abençoar os que amaldiçoam, orar pelos inimigos, oferecer a outra face, e não resistir ao mal. O Caminho da Vida é um chamado a uma santidade prática, que se manifesta em generosidade, pureza sexual, honestidade e humildade.
Em contrapartida, o Caminho da Morte é descrito com uma lista de vícios: assassinato, adultério, roubo, cobiça, idolatria, soberba e hipocrisia. É um retrato sombrio de uma vida afastada de Deus, governada pelo egoísmo e pela destruição. Para o autor da Didaquê, a escolha era clara. A vida cristã não era uma questão de especulação filosófica, mas uma decisão diária e prática de seguir um caminho em detrimento do outro.
Rituais e Disciplinas: Batismo, Jejum e Oração
Depois de estabelecer o fundamento moral, o manual passa para as instruções práticas. Como uma pessoa entrava formalmente para a comunidade? Através do batismo. A Didaquê oferece o que parece ser o mais antigo conjunto de instruções litúrgicas fora do Novo Testamento: “Tendo recitado todas estas coisas [o Caminho da Vida], batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água corrente.”
A instrução é notável por sua combinação de idealismo e pragmatismo. A preferência é por “água corrente”, viva, simbolizando a nova vida em Cristo. A água deveria ser fria, talvez para marcar a seriedade e o choque da nova realidade espiritual. Contudo, o texto imediatamente oferece alternativas. Se não houver água corrente, pode-se usar água parada. Se não houver água fria, pode-se usar água morna. E, na ausência de quantidade suficiente para imersão, a instrução é surpreendentemente prática: “derrame água sobre a cabeça três vezes em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” Essa flexibilidade revela uma comunidade mais preocupada com a essência do ato – a confissão de fé na Trindade – do que com uma rigidez cerimonial absoluta. É uma visão que, séculos mais tarde, estaria no centro de debates entre diferentes tradições da Igreja Protestante e da Igreja Católica sobre a forma correta do batismo.
A Didaquê também instrui que tanto o batizador quanto o batizando jejuem antes do rito, “juntamente com quaisquer outros que puderem”. O jejum, aliás, era uma disciplina central. O texto orienta os cristãos a jejuar de uma maneira que os diferenciasse dos “hipócritas” – uma referência provável a alguns grupos judaicos não-cristãos que jejuavam às segundas e quintas-feiras. A Didaquê instrui: “jejuem na quarta-feira e na sexta-feira.” Este é um exemplo fascinante da formação de uma identidade cristã distinta. A escolha dos dias não era aleatória; era uma declaração pública de pertencimento a uma nova aliança.
A oração também recebe uma estrutura. Os cristãos são instruídos a não orar como os “hipócritas”, mas como o Senhor ensinou no Evangelho. Em seguida, o texto transcreve a Oração do Pai Nosso, em uma versão muito próxima à do Evangelho de Mateus, e ordena: “Rezem esta oração três vezes ao dia.” Esta é uma das primeiras evidências de uma prática de oração diária e regular na vida da Igreja, o embrião do que se tornariam os ofícios divinos e as liturgias das horas.
A Refeição do Senhor: A Eucaristia na Igreja Primitiva
Talvez a seção mais surpreendente da Didaquê seja a que trata da Eucaristia, ou “Ação de Graças”. As orações prescritas são belas, mas notavelmente diferentes das palavras da instituição que encontramos nos Evangelhos Sinóticos e em Paulo (“Este é o meu corpo… este é o meu sangue”).
Primeiro, agradece-se pelo cálice: “Nós te damos graças, nosso Pai, pela santa vinha de teu filho Davi, que nos revelaste através de teu filho Jesus. Tua é a glória para todo o sempre.” A referência à “vinha de Davi” é uma imagem rica, ligando Jesus à realeza de Israel e à promessa messiânica.
Depois, pelo pão partido: “Nós te damos graças, nosso Pai, pela vida e pelo conhecimento que nos revelaste através de teu filho Jesus. Tua é a glória para todo o sempre. Assim como este pão partido estava espalhado sobre as montanhas e, sendo reunido, tornou-se um, que a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino.” Esta oração revela uma profunda teologia da unidade da Igreja. O pão, feito de muitos grãos, simboliza os muitos crentes que se tornam um só corpo em Cristo.
É importante notar que a Didaquê insiste que “ninguém coma ou beba desta Ação de Graças, a menos que tenha sido batizado em nome do Senhor”, citando a advertência de Jesus: “Não deem o que é santo aos cães.” Vemos aqui, já no início da história dos cristianismos, a prática da comunhão fechada, reservada àqueles que fizeram um compromisso público de fé. Após a refeição, uma outra oração de agradecimento é oferecida, pedindo a Deus que se lembre de Sua Igreja, a livre do mal e a aperfeiçoe em Seu amor.
A ausência das palavras da instituição tem gerado muito debate. Alguns sugerem que a Didaquê representa uma tradição litúrgica muito antiga, talvez paralela à registrada por Paulo. Outros acreditam que as palavras da instituição eram tão sagradas e conhecidas que não precisavam ser escritas, sendo pronunciadas de memória, e que as orações da Didaquê eram um complemento. De qualquer forma, o texto nos dá uma visão da Ceia do Senhor focada na ação de graças, na revelação de vida através de Jesus e na unidade escatológica da Igreja.
Profetas, Apóstolos e a Ordem da Igreja
Uma das seções mais reveladoras da Didaquê trata de como lidar com ministros itinerantes. Naquela época, a estrutura da igreja era fluida. Havia líderes locais, mas também “apóstolos” (missionários e fundadores de igrejas, não necessariamente os Doze) e “profetas” que viajavam de comunidade em comunidade. Isso criava um problema: como saber se um pregador era genuíno ou um aproveitador?
A Didaquê estabelece regras claras e pragmáticas. Um apóstolo itinerante deveria ser recebido “como o Senhor”, mas não poderia ficar mais de um dia, ou dois se necessário. “Se ele ficar três dias, é um falso profeta.” Ao partir, ele não deveria receber nada além de pão para a viagem. “Se ele pedir dinheiro, é um falso profeta.” Essas regras visavam proteger as comunidades de exploradores que usavam o nome de Cristo para benefício próprio, os chamados “cristo-negociantes”.
O teste para um profeta era ainda mais profundo. Não se deveria testar um profeta que fala “no Espírito”, pois esse seria o pecado imperdoável. No entanto, o critério definitivo era o seu modo de vida. “É pela sua conduta que se pode distinguir os falsos profetas dos verdadeiros.” Se um profeta ensina a verdade, mas não pratica o que ensina, ele é um falso profeta. A coerência entre palavra e vida era o selo da autenticidade.
O manual também mostra uma igreja em transição. Ao lado dos ministros itinerantes, a Didaquê instrui as comunidades: “Portanto, nomeiem para vocês mesmos bispos e diáconos dignos do Senhor, homens mansos e não amantes do dinheiro, verdadeiros e aprovados.” Estes eram os líderes locais, eleitos pela própria congregação, responsáveis pelo ensino e pela administração. A recomendação para que não fossem desprezados, mas honrados ao lado dos profetas e mestres, sugere que a autoridade local estava começando a se solidificar, um passo fundamental na evolução da estrutura hierárquica que marcaria a Igreja Católica e outras tradições episcopais.
Vigilância e o Fim dos Tempos
A parte final da Didaquê é um chamado urgente à vigilância. “Tenham cuidado com a sua vida. Não deixem que as suas lâmpadas se apaguem, nem que os seus lombos se descingam, mas estejam prontos, pois não sabem a hora em que o nosso Senhor virá.” O texto exorta os crentes a se reunirem com frequência, pois “todo o tempo como crente não valerá de nada se você não for encontrado perfeito no fim dos tempos.”
A descrição do fim é dramática. Nos últimos dias, falsos profetas e corruptores se multiplicarão, ovelhas se transformarão em lobos e o amor se converterá em ódio. Então, “o enganador do mundo aparecerá como um Filho de Deus”, realizando sinais e maravilhas e mergulhando o mundo em uma impiedade sem precedentes. A humanidade passará pelo “fogo da provação”, mas “todos os que perseverarem na sua fé serão salvos”. Por fim, os sinais da verdade aparecerão: uma fenda nos céus, o som da trombeta e a ressurreição dos mortos. O mundo então verá “o Senhor vindo sobre as nuvens do céu”.
Esta visão escatológica, embora construída a partir de passagens de todo o Novo Testamento, tem um tom de urgência e imediatismo que caracteriza a fé da Igreja Primitiva. A vinda do Senhor não era uma doutrina abstrata, mas uma expectativa real que moldava a ética, a adoração e a vida comunitária.
O Legado da Doutrina
A Didaquê é muito mais do que uma curiosidade histórica. É um testemunho de uma fé cristã robusta, prática e profundamente comunitária. Ela nos mostra uma igreja preocupada com a santidade do dia a dia, com a ordem litúrgica, com a integridade de seus líderes e com a expectativa do retorno de Cristo. Embora não tenha entrado para o cânone, seu espírito ecoou através dos séculos na História da Igreja. Suas instruções sobre o batismo, suas orações eucarísticas e seu modelo de liderança informaram o desenvolvimento de muitas práticas que católicos e protestantes continuam a debater e a praticar até hoje.
Este pequeno manual nos lembra que, antes das grandes catedrais, dos complexos sistemas teológicos e das divisões institucionais, o cristianismo era, em sua essência, um “caminho” a ser seguido. Um caminho de amor, disciplina, comunidade e esperança. A Didaquê nos convida a olhar para trás, não para replicar o passado de forma simplista, mas para redescobrir as questões fundamentais que animaram a primeira geração de cristãos: como viver uma vida que seja digna do Evangelho, juntos, em um mundo quebrado, enquanto esperamos a vinda do nosso Senhor.