O arrependimento é um conceito fundamental na teologia cristã, e sua importância é particularmente evidente nos escritos dos Padres Apostólicos, aqueles autores cristãos que viveram no final do primeiro século e início do segundo século, e que se acredita terem tido contato direto com os apóstolos de Jesus.

É crucial entender que, para esses primeiros líderes cristãos, o arrependimento era muito mais do que um simples remorso ou pesar por ações passadas; ele representava uma mudança radical de mentalidade e de comportamento, um afastamento decisivo do pecado e um retorno a Deus¹.

Este artigo explorará o significado do arrependimento e as razões pelas quais ele ocupa um lugar de destaque nos textos desses autores.

O Arrependimento nos Textos dos Primeiros Líderes Cristãos

Para começar a nossa conversa, precisamos entender quem foram os Padres Apostólicos. Eles foram líderes cristãos que viveram no final do primeiro século e no início do segundo século, logo após a era dos apóstolos de Jesus. Eles são chamados de “Apostólicos” porque se acredita que tiveram contato direto com os apóstolos ou com seus discípulos, transmitindo seus ensinamentos e valores. Seus escritos são incrivelmente valiosos, pois nos oferecem uma janela para o pensamento e a prática da Igreja primitiva, logo após o período em que os apóstolos ainda estavam vivos e liderando a igreja.

Clemente de Roma

Entre esses importantes líderes, um dos mais proeminentes foi São Clemente de Roma. Clemente foi o bispo de Roma no final do primeiro século. Acredita-se que ele tenha sido o terceiro sucessor de São Pedro, o apóstolo. Uma das obras mais importantes de Clemente é a “Carta aos Coríntios“, escrita por volta do ano 96 d.C. Nesta carta, Clemente oferece conselhos e exortações à igreja de Corinto, que estava passando por um período de divisão e conflito. Clemente enfatiza a necessidade de arrependimento, humildade, obediência e amor fraterno para restaurar a paz e a unidade na comunidade.

Na Carta de Clemente aos Coríntios, o arrependimento é um tema central. Clemente não apenas adverte os coríntios sobre as consequências da inveja e da sedição, mas também os exorta a fazer penitência, demonstrando a importância do arrependimento na vida cristã. Ele destaca que o sangue de Cristo, derramado pela nossa salvação, trouxe ao mundo a graça do arrependimento. Clemente enfatiza que Deus oferece o dom do arrependimento como um caminho para a reconciliação e a restauração.

“Tenhamos os olhos fixos no sangue de Cristo, e compreendamos como é precioso ao seu Pai. Derramado pela nossa salvação, trouxe ao mundo a graça do arrependimento”. (Carta aos Coríntios de Clemente de Roma)

Clemente usa exemplos do Antigo Testamento para ilustrar a importância do arrependimento. Ele menciona figuras como Enoque, Noé, Abraão e Ló, destacando que eles foram recompensados por sua obediência e fé. Ele também adverte sobre as consequências da desobediência, citando exemplos como Caim, Esaú e os filhos de Eli. Ao apresentar esses exemplos, Clemente exorta os coríntios a aprenderem com a história e a buscarem o arrependimento genuíno.

Além disso, Clemente enfatiza que o arrependimento não é apenas um ato individual, mas também tem implicações comunitárias. Ele os adverte para que seus numerosos benefícios não se tornem uma condenação, caso não vivam de maneira digna, realizando na concórdia o que é bom e agradável aos olhos de Deus. Clemente os incentiva a resolverem seus conflitos e a restaurarem a harmonia na comunidade.

Inácio de Antioquia

Outro importante Padre Apostólico foi Santo Inácio de Antioquia. Inácio foi o bispo de Antioquia, na Síria, no início do segundo século. Ele é conhecido por suas sete cartas, escritas durante sua viagem para Roma, onde enfrentaria o martírio. Nessas cartas, Inácio aborda diversos temas, incluindo a unidade da Igreja, a importância do bispo, a realidade da encarnação de Cristo e a necessidade de evitar as heresias.

Inácio também enfatiza a importância do arrependimento como um caminho para a restauração e a renovação espiritual. Ele exorta os cristãos a se arrependerem de seus pecados e a buscarem a reconciliação com Deus e com seus irmãos. Inácio destaca que o arrependimento é um processo contínuo, que envolve confissão, contrição e mudança de vida.

Policarpo de Esmirna

Além de Clemente e Inácio, outro importante Padre Apostólico foi São Policarpo de Esmirna. Policarpo foi o bispo de Esmirna, na Ásia Menor, e é considerado um dos mais importantes líderes da Igreja primitiva. Ele é conhecido por sua “Carta aos Filipenses“, na qual ele oferece exortações e conselhos práticos aos cristãos de Filipos.

Policarpo enfatiza a importância de permanecer firme na fé, evitar as falsas doutrinas e viver uma vida de santidade e amor. Ele também destaca a necessidade de se arrepender dos pecados e de buscar a misericórdia de Deus. Policarpo adverte contra aqueles que negam a encarnação de Cristo e distorcem as Escrituras, enfatizando a importância de retornar à verdade que foi transmitida desde o princípio.

O Pastor de Hermas

Outro texto importante para compreendermos esse período é “O Pastor de Hermas”. Hermas foi um cristão que viveu em Roma no segundo século. Ele é conhecido por sua obra “O Pastor“, um livro que contém visões, mandamentos e parábolas. “O Pastor” aborda temas como o arrependimento, o perdão, a importância da Igreja e a necessidade de viver uma vida de santidade.

Hermas enfatiza que o arrependimento é possível mesmo após o batismo, oferecendo esperança para aqueles que pecaram após terem se tornado cristãos. Ele destaca que Deus é misericordioso e está disposto a perdoar aqueles que se arrependem de coração. No entanto, Hermas também adverte que o arrependimento tem um limite e que é preciso evitar pecar deliberadamente após ter recebido o perdão.

Didaquê

O texto conhecido como a “Didaquê“, ou “Ensinamentos dos Doze Apóstolos“, é um manual cristão do século I ou II que oferece instruções sobre a vida cristã, a liturgia e a organização da Igreja. A Didaquê enfatiza a importância de escolher o caminho da vida e evitar o caminho da morte, que leva à perdição.

A Didaquê também destaca a importância do arrependimento como um meio de retornar ao caminho da vida. Ela exorta os cristãos a confessarem seus pecados, a se arrependerem de suas más ações e a buscarem a reconciliação com Deus e com seus irmãos [25, 26]. A Didaquê ensina que o arrependimento é um processo contínuo, que envolve mudança de atitude, transformação de coração e busca pela santidade.

A Carta de Barnabé

Finalmente, a “Carta de Barnabé” é outro documento importante do período dos Padres Apostólicos. Embora a autoria desta carta seja incerta, ela oferece insights valiosos sobre o pensamento cristão do século I ou II. A Carta de Barnabé enfatiza a importância de interpretar corretamente as Escrituras e de evitar as práticas judaicas que não são mais relevantes para os cristãos.

A Carta de Barnabé também destaca a necessidade de se arrepender dos pecados e de se converter a Cristo. Ela ensina que o batismo é um sinal de arrependimento e de purificação dos pecados. A Carta de Barnabé exorta os cristãos a abandonarem o caminho das trevas e a seguirem o caminho da luz, que leva à vida eterna.

Ao examinarmos os escritos dos Padres Apostólicos, fica claro que o arrependimento era um tema central em sua teologia e prática. Eles enfatizavam que o arrependimento é essencial para a salvação, para a restauração da comunhão com Deus e para a manutenção da unidade da Igreja.

Definição de Arrependimento

Mas o que significa exatamente “arrependimento”? Em linhas gerais, o arrependimento envolve reconhecer nossos pecados, sentir tristeza por tê-los cometido e tomar a decisão de abandoná-los e seguir a Cristo.

O dicionário Priberam define arrependimento como “pesar de ter feito ou dito alguma coisa; remorso, contrição”. É interessante notar que o termo grego para arrependimento, “metanoia”, significa literalmente “mudança de mente”, o que reforça a ideia de uma transformação profunda na maneira de pensar e agir. Essa mudança de mente, por sua vez, leva a uma mudança de direção na vida, afastando-se do pecado e buscando a Deus.

Neste sentido, os Padres Apostólicos destacavam que o arrependimento não é apenas um sentimento passageiro, mas uma transformação profunda e duradoura. Envolve uma mudança de coração, uma renovação da mente e uma reorientação da vida. O arrependimento nos leva a abandonar o pecado e a buscar a santidade, a amar a Deus e ao próximo, e a viver de acordo com os ensinamentos de Cristo.

Mas por que o arrependimento era tão enfatizado pelos Padres Apostólicos? Havia várias razões para isso. Em primeiro lugar, eles estavam seguindo o exemplo dos apóstolos, que haviam pregado o arrependimento como parte central do Evangelho. Em segundo lugar, eles estavam enfrentando desafios e dificuldades em suas comunidades, como divisões, heresias e imoralidade. O arrependimento era visto como um meio de restaurar a unidade, de combater as falsas doutrinas e de promover a santidade na Igreja. Em terceiro lugar, eles estavam conscientes da fragilidade humana e da tendência ao pecado. O arrependimento era visto como um processo contínuo, necessário para manter a comunhão com Deus e para crescer na fé.

Em suma, os Padres Apostólicos nos ensinam que o arrependimento é um dom de Deus, oferecido a todos que se aproximam dele com um coração contrito e humilde. Eles nos convidam a examinar nossas vidas, a reconhecer nossos pecados, a buscar o perdão de Deus e a seguir a Cristo com todo o nosso coração.

Fontes:

Padres apostólicos / [introdução e notas explicativas Roque Frangiotti ; tradução Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin]. — São Paulo : Paulus, 1995. — (Patrística Vol. 1)

Arrependimento – Dicionário Online Priberam de Português, acesso a fevereiro 13, 2025, https://dicionario.priberam.org/arrependimento